sexta-feira, novembro 04, 2011

Não só os livros que se leem



Fragmento do livro -” E se Obama fosse africano? E outras interinvenção”- Mia Couto – Editora Nadjira
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos sinais climáticos, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Quixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler vida quando o ato de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar história onde nos parece reinar o silêncio?
Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa ai, na infância. A infância não é um tempo, não é idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demaziado tarde. É quando estamos disponíveis para supreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que prendemos o próprio sentimento do tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança, como se ela fosse a maioridade, uma falta, um estágio precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maioridade. É uma janela que fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Recordo-me de que a guerra tinha flagrado no meu país e o meu pai me levava a passear por antigas vias – férreas à procura de minérios brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se desmoronava, mas ali estava o homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma lição de poesia. Uma lição de leitura do chão e o olhar. E ali estava a cura para uma ferida que não saberia nunca localizar em mim, uma especié de memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um cortinado de bruma.
Pois vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão em página.(...)

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