Fragmento do livro -” E se Obama fosse africano? E outras interinvenção”- Mia Couto – Editora Nadjira
Falamos
em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso
comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se
a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos sinais
climáticos, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a vida. Tudo pode
ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso
olhar. Quixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas déficit
de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos
os outros.
Vale
a pena ler livros ou ler vida quando o ato de ler nos converte num
sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens.
Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar
histórias? Ou sabemos simplesmente escutar história onde nos parece
reinar o silêncio?
Lembrei
aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa ai, na
infância. A infância não é um tempo, não é idade, uma coleção
de memórias.
A infância é quando ainda não é demaziado
tarde. É quando estamos disponíveis para supreendermos, para nos
deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que
prendemos o próprio sentimento do tempo.
A
verdade é que mantemos uma relação com a criança, como se ela
fosse a maioridade, uma falta, um estágio precário. Mas a infância
não é apenas um estágio para a maioridade. É uma janela que
fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Recordo-me
de que a guerra tinha flagrado no meu país e o meu pai me levava a
passear por antigas vias – férreas à procura de minérios
brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se
desmoronava, mas ali estava o homem ensinando o seu filho a catar
brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma lição de poesia.
Uma lição de leitura do chão e o olhar. E ali estava a cura para
uma ferida que não saberia nunca localizar em mim, uma especié de
memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um
cortinado de bruma.
Pois
vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão
em página.(...)
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